A verdade é que anuência do proprietário nem sempre é uma condição determinante para uma adjudicação. Em várias situações a Usucapião Extrajudicial poderá ser a única forma de obtenção da propriedade.
Enfim chegamos a 2019! A ano que passou foi cheio de realizações e, dentre estas, fico feliz por ter avançado na minha missão de difundir a Advocacia Extrajudicial, em especial, o procedimento extrajudicial da Usucapião.
Aliás, o ano de 2018 contou com a adesão de muitos Causídicos, visto que o Provimento 65/2017 do CNJ trouxe mais luz ao procedimento. Com isso, cada vez mais Advogados(as) de todo o Brasil agora comprovam a potencialidade da Usucapião Extrajudicial gerar resultados mais céleres tanto para si como para seus clientes.
Eu pude comprovar esse aumento do interesse pelo tema de perto, pois meu curso online sobre Usucapião Extrajudicial superou, em 2018, a marca de 1.700 alunos! Fico muito grato por poder colaborar com o aprimoramento profissional de tantos colegas de todo o Brasil.
Com este aumento de alunos, é normal que mais e mais dúvidas cheguem, e este artigo responde diretamente uma dessas dúvidas, dada a sua recorrência.
A pergunta dessa dúvida, à primeira vista, faria todo o sentido, contudo, vou demonstrar nas linhas que se seguem que ela é oriunda, de certa forma, do desconhecimento dos princípios jurídicos norteadores da atividade registral imobiliária exercida pelos cartórios.
A dúvida é a seguinte: se o requerente de um pedido de Usucapião Extrajudicial precisa contar com a anuência do detentor de direitos averbados ou registrados na matrícula do imóvel usucapiendo ou dos imóveis confinantes (que na maioria esmagadoras das vezes será o proprietário que consta na matrícula do imóvel a ser usucapido), por que não simplesmente realizar a tradição do Bem através de uma venda e compra ou doação?
Nem toda a transmissão de bem imóvel consegue ser registrada
Essa pergunta, como já disse, parece pertinente, afinal, nosso viés contencioso automaticamente nos faz pensar a Usucapião como um pedido em que sempre o requerido se oporia à perder sua propriedade. Ademais, acabamos desavisadamente comparando a lavratura de uma Escritura Pública de Venda e Compra, e seu registro, como algo muito menos trabalhoso e complicado do que todo o procedimento que envolve Usucapir um imóvel.
Todavia, eu preciso explicar que, na prática, eu presenciei e até examinei Escrituras Públicas de Venda e Compra que, simplesmente, não conseguiam ser registradas pelo fato de haverem exigências extremamente difíceis de serem cumpridas pelo requerente do pedido de registro.
Essa dificuldade obviamente não representa nem de longe a maioria de tais títulos, todavia, como estamos falando de imóveis em que já estão na posse não daquele que consta na matrícula do imóvel, as chances de ocorrerem contratempos que, na maioria esmagadora dos casos só serão vencidos com a Usucapião Extrajudicial, é grande.
Por sua vez, esses contratempos que geram tais exigências que não conseguem ser resolvidas são oriundos, muitas vezes, de atos que uma vez não registrados no tempo oportuno, acabam acarretando outras exigências de adequação que dificultam, em muito, o seu registro.
Internamente, temos até essa máxima no cartório, de que “não há multa por não registrar determinado ato na matrícula, mas que o tempo se encarrega de punir”. Na maioria esmagadora das vezes, essa profecia se torna realidade, infelizmente.
E por que isso ocorre? Acredito que, para um perfeito entendimento dessas causas, temos que antes entender, pelo menos, 2 princípios do Registro de Imóveis que, certamente, são os que mais geram problemas quanto ao registro tardio de atos.
Princípios Jurídicos que norteiam a atividade do Registro de Imóveis
Tarefa que cabe ao Oficial de Registro (ou a seu funcionário, no caso o Examinador), o exame de admissibilidade de averbação e/ou registro de um título é todo baseado no cumprimento dos Princípios Jurídicos norteadores da atividade registral imobiliária.
Esses princípios são encontrados na Constituição Federal, na Lei de Registros Públicos, nas demais legislações correlatas e nos Códigos de Normas das Corregedorias Estaduais, geralmente essas normas encontram-se agrupadas.
Para este artigo, quero destacar, como já disse, dois desses princípios: o da Especialidade Objetiva e o da Especialidade Subjetiva.
De forma que a explicação destes princípios seja a mais didática possível, nas linhas que se seguem vou dar um exemplo passível de ser objeto de uma Usucapião pela via extrajudicial.
Vou contar a história de Pedro, que comprou um imóvel em 1959. Na verdade, trata-se de um terreno em um bairro que, naquela época, praticamente não existia, era “tudo mato”.
Pedro comprou através da lavratura de uma Escritura Pública de Venda e Compra e registrou este título no respectivo Ofício de Registro de Imóveis responsável pela circunscrição que contempla aquele bairro onde o até então terreno, sem qualquer edificação, está localizado.
Tudo bem até aqui. Pedro, que comprou esse terreno em uma localização litorânea, de veraneio, pretendia, um dia, realizar o sonho de construir aquela senhora casa de praia, com tudo a que teria direito.
Ocorre que Pedro comprou o terreno numa localidade que fica 150 km da cidade onde mora e trabalha! Como pode-se imaginar, no primeiro ano de aquisição Pedro ia no terreno uma vez por mês, para cuidar do terreno. No ano seguinte, essa assiduidade passou para uma vez a cada trimestre, depois semestre, depois uma vez por ano, até que de 1970 até 1980, Pedro não foi absolutamente nenhuma vez no terreno.
Nesses 10 anos de ausência, e cerca rudimentar se deteriorou de tal forma que praticamente já não existe mais. Em 1981 o terreno então é ocupado por João, que se informou com os vizinhos que já havia 10 anos sem que o proprietário aparecesse para cuidar do imóvel. Então João, sem moradia, resolveu ocupar o terreno. Tirou todo o mato e entulho do terreno, e nele resolveu construir uma pequena casa, apenas com sala, cozinha e banheiro, e nessa pequena casa construída foi morar ele e sua família.
Daí o tempo passou. Aquela pequena casa, com o passar dos anos, foi sendo sucessivamente ampliada, conforme os filhos de João iam crescendo.
Pedro simplesmente nunca mais retornou naquele imóvel. Em 2001, ele foi transferido no emprego para morar em outra região do país, ainda mais distante do terreno, o que o desanimou ainda mais de retornar ao mesmo um dia para ver sua situação. Ele não colocou o terreno a venda, na sua mudança, justamente porque já faziam anos, ele nem sequer pagou o IPTU, e não tendo dinheiro para regularizar tal situação, “deixou para lá”.
João, agora em 2018, já com netos, entendeu que era hora de regularizar a situação de registro da sua casa, afinal, durante todos esses anos apenas tinha a posse do imóvel, e agora, já com netos, acredita que o melhor é regularizar essa situação para que não fique um “abacaxi” para seus herdeiros, caso viesse a falecer.
Foi então que João procurou o Ofício de Registro de Imóveis e, através de uma certidão de propriedade e ônus, obteve os dados de Pedro. Com o seu antigo endereço residencial, informando na Escritura de Venda e Compra que estava arquivado no Ofício de Registro de Imóveis, João descobriu que Pedro havia se mudado para outra região do Brasil, mas um vizinho de Pedro tinha o seu contato, e assim João fez o primeiro contato com Pedro.
Passado tanto tempo, Pedro resolveu aceitar a realidade, ou seja, que João já tinha a posse por mais de 15 anos e assim, não quis ir ao Judiciário para resolver esta questão. Ele próprio sugeriu à João o procedimento da Usucapião Extrajudicial e se comprometeu a anuir.
Mas João acreditava que era mais simples e menos oneroso simplesmente Pedro outorgar uma procuração para que João fizesse uma doação do imóvel…
Será que esse é o caminho mais eficiente para João? É o que vamos ver agora!
Princípio da Especialidade Objetiva (Artigo 176, § 1º, II, 3, Artigo 222 e Artigo 225 § 2º, da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos)
Este princípio trata que, quanto às informações que detalham as características do Imóvel, não pode haver qualquer discrepância entre o que consta na matrícula e o que se fez constar no título a ser averbado/registrado.
Acredite, muitos títulos esbarram neste princípio, muito mais do que se pode imaginar.
No nosso exemplo, João não contava com algumas situações adversas ao pensar que o melhor seria uma Doação, ao invés da Usucapião, uma delas dizia respeito justamente ao fato de que a descrição do imóvel na Escritura Pública de Doação não era a mesma que constava na matrícula do imóvel.
Isso não ocorreu porque na matrícula, apenas constava o terreno, sem nenhuma edificação (construção). Ocorre que todos os documentos atuais dão conta de que o imóvel hoje tem uma enorme edificação. Trata-se de uma casa de 3 quartos, que inicialmente tinha apenas 1, e João jamais se preocupou com o HABITE-SE desta construção. Mas o maior problema de todos é que João não respeitou algumas normas da Postura Municipal, que por se tratar de uma região litorânea, não permite edificações com mais de 2 andares.
Pelo fato de o terreno ser muito retangular, João fez 3 pavimentos. Assim, para obter o HABITE-SE, João simplesmente teria que derrubar todo o terraço que construiu no terceiro andar.
O problema é que o Tabelião que lavrasse esta Escritura de Doação não podia ignorar que João pagou o IPTU constando no documento que era um imóvel com edificação. Sim, prefeituras de todo o Brasil possuem casos de cobrança de IPTU com a constatação de área construída no imóvel, mesmo que esta edificação não tenha sido aprovada através de HABITE-SE. Isso acontece porque, em nosso país, mais vale arrecadar do contribuinte do que protegê-lo de uma edificação que, eventualmente, possa oferecer risco a ele próprio e a terceiros.
Neste momento, o próprio Tabelião indagou a João essa situação, demonstrando a João que se ele não tivesse em mãos o Alvará de HABITE-SE para apresentar ao Oficial de Registro de Imóveis, certamente esta seria a primeira exigência que teria que ser atendida, para que, antes do registro da Doação, fosse realizada a averbação da Edificação do imóvel.
O problema é que João percebeu o como esse HABITE-SE seria trabalhoso, demorado e dispendioso para ser obtido. Mas esse não era o único problema de João…
Princípio da Especialidade Subjetiva (Artigo 176, § 1º, II, 4, da Lei de Registro Público)
Este princípio segue a mesma lógica do anterior, só que agora com relação às informações referentes às pessoas ligadas ao Imóvel. Dessa forma, também não pode haver discrepância entre as informações que constam na Matrícula e o que fez constar no Título a ser averbado/registrado.
Já me repetindo, afirmo que aqui também temos outro caso de grande incidência de exigências no exame realizado pelo Registro de Imóveis. Arrisco eu a dizer que, talvez, até em maior número do que o da inobservância do Princípio da Especialidade Objetiva.
Vamos voltar a nosso exemplo deste artigo. João também terá outro problema a frente que já foi alertado pelo Tabelião. É que Pedro, quando adquiriu o terreno, era solteiro. Mas em 1974, Pedro se casou com Adriana, contudo, ele não averbou sua alteração de estado civil de solteiro para casado.
Se ficarmos até aqui, João já teria que que solicitar que Pedro apresenta-se sua Certidão de Casamento, para que fosse realizada a averbação desta alteração de estado civil antes que fosse realizado o registro da Doação pretendida.
Só que a vida é uma “caixinha de surpresas” e, na verdade, Pedro não permaneceu casado. Em 1983, ele se divorciou de Adriana. Como se casaram pelo regime padrão de bens, ou seja, o da comunhão universal de bens, afinal, se casou em 1974, anterior à Lei 6.515/77, o certo é que Adriana tem direito à metade do imóvel.
Mas há um porém…
Pedro nunca revelou à Adriana a existência desse terreno. Dessa forma, quando houve o divórcio, este terreno não foi arrolado na partilha de bens do casal.
Se parasse aqui, já teríamos problemas demais, mas Pedro casou novamente em 1991, com quem foi casado até 1999, quando mais uma vez se divorciou. Aqui também Cláudia, sua nova ex-esposa, também nunca ouviu falar desse terreno, pelo que também não houve nenhuma menção na nova partilha de bens.
Mas Pedro, em 2003, casou novamente, agora com Shirley, adotando o regime da separação total de bens. Ele permanece casado até hoje com Shirley, que não pode nem ouvir falar das ex-esposas de Pedro, sem que uma “Terceira Guerra Mundial” comece, dado o seu ciúme.
Aqui temos o típico caso de negligência quanto às alterações de Estado Civil por parte de um proprietário de imóvel registrado. Principalmente quando lidamos com tantos anos sem qualquer atualização da matrícula, problemas de ordem pessoal podem tornar o cumprimento de exigências embasadas no Princípio da Especialidade Subjetiva praticamente uma “missão impossível”.
No exemplo em tela, Pedro teria que ter promovido todas as averbações de alteração de estado civil necessárias, incluindo o registro da partilha dos dois divórcios, a fim de que, hoje, pudesse doar o antigo terreno a João.
O problema prático é que Pedro agora já não está mais disposto a prosseguir com a doação para conceder a propriedade para João, tendo em vista que ele não quer se indispor com sua atual esposa, muito menos com suas ex-esposas, para as quais ele omitiu a existência deste terreno.
Complicado também é que a primeira esposa teria direito à metade deste terreno que Pedro omitiu a existência. Além de averbar esta alteração de estado civil, seria necessário o registro de uma sobrepartilha, que ainda teria que ser realizada para que o bem omitido fosse devidamente partilhado. Dá para entender o “trabalhão” que vai resultar esta doação pretendida como “alternativa” à um procedimento extrajudicial de Usucapião?
Mas então, qual a vantagem do procedimento da Usucapião Extrajudicial?
No exemplo acima, restou demonstrado que, nem sempre, anuência significa ter como melhor caminho uma transmissão da propriedade por venda e compra ou por doação.
Acredito que alguns até possam acreditar que esta história que eu criei para este estudo seja fantasiosa, típico exemplo de “tubo de ensaio”. Mas posso assegurar a você, caro leitor(a), durante os mais de 4 anos em que colaborei com a equipe do 2.º Ofício de Registro de Imóveis do Recife – PE como Examinador Jurídico, vi inúmeros casos em que tais exigências se faziam necessárias, casos, por vezes, até mais “enrolados” que o do exemplo deste artigo.
Portanto, é de forma prática que eu posso afirmar: em se tratando de posse com finalidade de reconhecimento do direito de propriedade, o melhor remédio a ser adotado é o do procedimento da Usucapião Extrajudicial.
A fim de esclarecimento, vou dar aqui minhas razões para tal afirmação:
1 – Estamos falando de uma Aquisição Originária:
A obtenção da propriedade de um determinado imóvel através da Usucapião não deriva de uma transmissão, mas sim de um fato jurídico independente, sem qualquer vínculo ou dependência da vontade do titular anterior do imóvel.
Temos portanto que, se estamos diante de tal situação fática, e se ela independe, a princípio, da vontade deste titular, não há como se exigir do requerente que este venha a responder por ônus ou gravames cabíveis àquele.
Dessa forma, as exigências que eu citei no exemplo deste artigo não constituem impedimento no registro da Usucapião, seja judicial ou extrajudicial.
Na via extrajudicial, o reconhecimento da Usucapião necessita da anuência do titular de direitos averbados ou registrados do imóvel pelo fato de que o Oficial de Registro, por óbvio, não tem como julgar, discutir a situação fática em si. Ele tem poder para analisar apenas se o título atende às exigências legais, o impedindo através de exigências que uma vez cumpridas, retiram essa barreira, ou então reconhecendo que o título está em conformidade com a Lei e o registrando para que seus efeitos legais sejam efetivados.
Mas essa anuência, mesmo que ocorresse durante uma audiência de conciliação no Judiciário, não faria com que a Ação perdesse seu objetivo, até porque, se o fato jurídico que enseja o reconhecimento da Usucapião é provado (com a anuência, que é uma confissão dos fatos) por que não aproveitar os benefícios para o requerente que a Aquisição Originária resulta?
2 – Não incidência do imposto de transmissão
No procedimento extrajudicial da Usucapião, não há que se falar em Imposto de Transmissão, haja vista que não existe o fato gerador nem de ITBI, nem de ITCMD, pelo fato de que a Usucapião é uma forma de aquisição originária.
Mas aqui deixo um alerta. Não volte seus olhos para a Usucapião como mera alternativa para que o imposto não seja recolhido. Lembre-se que é necessário que todos os requisitos para a Usucapião sejam atendidos, dentre eles o período da prescrição aquisitiva (período da posse continuada) seja devidamente atendido. Ainda assim, Oficiais de Registro e procuradorias da Prefeitura e do Governo Estadual serão notificadas para averiguar o processo e estarão atentas quanto à utilização do procedimento com a má-fé de tentar não recolher o tributo.
Então, se seu cliente chegar com esse “papo de economizar imposto”, eu recomendo que você não fique com o cliente (é meu posicionamento particular, cada profissional proceda da forma que julgar mais adequada).
Conclusão
Eu acredito que restou demonstrado que a objetivada Anuência no procedimento da Usucapião Extrajudicial jamais deve ser vista como uma dificuldade, ou de forma que sua obtenção signifique que o procedimento em tela perca a sua razão (objetivo).
Sei que este artigo, que está abrindo uma nova fase para o Portal ExtraJus a partir deste ano de 2019, ainda comportaria ser mais esmiuçado. Esse assunto, como tantos outros envolvendo a Usucapião Extrajudicial e outros procedimentos extrajudiciais, você verá, pelo menos 1 vez na semana, ser apresentado aqui neste espaço.
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